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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Crónica de um disparo V

       Devia ela ver-se, reflectida nos lagos dos olhares alheios, nos lagos dos negros olhos do caçador. Caçador furtivo, sub-reptício, silencioso avaliador - devia agora vê-la: recolhida sobre si, fechada na sua carapaça, puxando os retalhos da armadura por ele fendida, buscando uma forma de se reconstruir, de suturar o rasgão profundo e sangrento que o golpe por ele desferido deixou no âmago do seu ser, no centro da sua confiança.

      Perdida, certo? Fora de tudo, esquecida do mundo e pelo mundo, certo? Sucesso, caçador, obtivestes. Parcial, pelo menos. Perdida está a fera, selvagem já não tanto. Perdida, mas já não tanto talvez. Encarando-se, desarmada, com a insignificância do seu ser e as falhas profundas do seu estar e viver, eis a fera ferida - perdida em reflexão, perdida na sua desconstrução, perdida e escondida a tratar suas feridas.

      Deviam vê-la, a apanhar os pedaços de si que a chumbada do caçador arrancou, pronta a reerguer-se renovada e cintilante. Deviam vê-la, perdida em si, perdida de rumo, buscando formas de se reconstruir, renovando-se e sendo melhor. Devia vê-la o caçador, que pouca ideia faz dos danos que causou. Devia vê-la bem, no seu habitat, para ver que há mais na fera que as suas limitações, do que o alvo que atingiu.

Crónica de um disparo VI

      Devia vê-lo, ela, sem os pudores habituais da fera que estranha o caçador de tiro certeiro. Devia vê-lo, a fera ferida, de olhos bem abertos e desprovida de preconceitos, ignorando a dor por ele causada e focando-se no despertar que lhe trouxe o seu disparo.

      Devias ver o caçador, criança selvagem e perdida. Devias vê-lo atentamente, com cuidado e zelo, com atenção e analiticamente. Fera és, mas não desprovida de intelecto, correcto? Observa, fera, com intenção e atenção, silenciosamente - enquanto ele te observa e ataca. Lê entre as linhas, interpreta o gesto, respira no seu olhar.

      Deviam vê-lo, o caçador. Jogando o seu isco, frio e distante, altivo e sabedor. O caçador certeiro, de mira bem afinada, rápido no cálculo do disparo. Enquanto prepara o seu tiro, observai-o bem - muito se pode ver na forma como a mão envolve a culatra, como o dedo se molda ao gatilho e a força suave ao premi-lo; muito se pode deduzir da rotação do ombro, da contracção do bicípide, da constante pressão muda que levará ao disparo eventual.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Crónica de um disparo IV

                 Deviam vê-lo. De olhar sedento de sangue e glória,na sua ânsia de desconstruir a criança selvagem. Deviam vê-lo. De olhar sorridente e sedutor, na sua forma de despir de sociedade e pudores a sua presa. Atento caçador, de analítico olhar, que apenas com um relance medite e avaliaste a tua presa e indigna a consideraste. Apenas com um disparo, perspicaz caçador, acertaste em cheio no âmago da tímida verdade que a fera lutava para esconder em si e, mais que tudo, de si.

Deviam vê-lo, agora silencioso, à espera, fingindo não a ver. Devia vê-la, atentamente, apreciando e avaliando o estrago que fez.

Devia ver-se, ela, a fera. Devia obrigar-se a enfrentar o que o "predador" pôs a nu. Aquilo que tanto se esforçou por reprimir e ocultar de si mesma, criança selvagem; que o bravo caçador, na sua candura, franqueza e frieza, a forçou a encarar.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Crónica de um disparo III

Deviam vê-la agora,apontar-lhe a mira e disparar certeiramente. O olhar desprovido de fogo, de anseio, de propósito. Talvez falte o selvagem que o caçador procurava, mas foi ele, com a sua carabina de tiro certeiro, que silenciou o seu rugido.
Deviam vê-la agora e novamente julgar, com balas de incandescente franqueza, indiferentes aos efeitos de tais disparos, às chagas sangrentas de palavras feitas munição.
Talvez um novo disparo desperte a besta e a faça reagir. Talvez rasgue com garras e presas a rede que a sufoca e se lance em frenético ataque sobre o cruel caçador. Talvez aí ele dispare novamente e obtenha da fera o olhar que ansiava.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Crónica de um disparo II

Deviam vê-la, retratá-la, agora destruída e forçada a confrontar-se com o pouco nada que na realidade é e a miséria em que se tornou a armadura que para si criara. Armadura ridícula, ilusória, papel de alumínio à guisa de chapa de aço temperado, enganando mais a que a enverga do que aqueles contra os quais a deveria defender.
É agora fera ferida de lume apagado, deviam vê-la. O instinto leva-a a fugir para as sombras, querendo sarar e reconstruir-se a partir dos escombros que o caçador de olho vivo lhe deixou. O instinto atrai-a para ele como a chama atrai a borboleta, querendo retaliar, magoar, pagar de alguma forma a dúbia vergonha, a dor pungente de ser confrontada à força com as suas falhas e a sua pequenez - o pouco, o nada, que conseguira por tempos iludir-se que nao era.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Crónica de um disparo I

Perdida,certo? Fora de tudo,esquecida do mundo,certo?
Era isso que se procurava,uma metáfora da criança selvagem,fora das regras,à margem da norma. Uma mirada oca e alheada de criatura ferida,de fera com instintos ao rubro.
Deviam vê-la agora. Pobre alma,retalhada em remendos que pouco e mal se mantinham juntos. Deviam vê-la,olhos escancarados com o espanto daqueles a quem é roubada a ilusão. O olhar alheado de quem se viu rechaçado e desprovido de esperança. Olhos vagos, de lume quase apagado,criança receosa de mãos fechadas - com a alma exposta no escrútinio de um alguém que não deveria tanto ler nela.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Bestial

Expandem-se as fauces
Da fera que pretendo ser
Criatura ignóbil e imunda de luz
Rejeição de um ser maior
Filha de algum segredo.
Anulo em mim a divindade
A sufocadora realidade mortal
Com o rasgar desta boca disforme
Num urro de selvajaria libertina.
Aos meus olhos
Uma existência grená
De ira de força de sanguíneo respirar.
Às minhas mãos
Um fenecimento fugaz
Ar que abandona a vista
Fogo que acalenta o paladar.
Fera sou
Ferida internamente
Como ao mundo exterior pretendo
Não ser.
Fera sou
Fera humana
Repleta de sociedade
Atitude
Motivação.
Transbordante de aprendizagem
Recompensa
Punição.
Fera sou
Por entre as feras
De todas as eras e ilusões!