Mostrar mensagens com a etiqueta armadura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta armadura. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Crónica de um disparo V

       Devia ela ver-se, reflectida nos lagos dos olhares alheios, nos lagos dos negros olhos do caçador. Caçador furtivo, sub-reptício, silencioso avaliador - devia agora vê-la: recolhida sobre si, fechada na sua carapaça, puxando os retalhos da armadura por ele fendida, buscando uma forma de se reconstruir, de suturar o rasgão profundo e sangrento que o golpe por ele desferido deixou no âmago do seu ser, no centro da sua confiança.

      Perdida, certo? Fora de tudo, esquecida do mundo e pelo mundo, certo? Sucesso, caçador, obtivestes. Parcial, pelo menos. Perdida está a fera, selvagem já não tanto. Perdida, mas já não tanto talvez. Encarando-se, desarmada, com a insignificância do seu ser e as falhas profundas do seu estar e viver, eis a fera ferida - perdida em reflexão, perdida na sua desconstrução, perdida e escondida a tratar suas feridas.

      Deviam vê-la, a apanhar os pedaços de si que a chumbada do caçador arrancou, pronta a reerguer-se renovada e cintilante. Deviam vê-la, perdida em si, perdida de rumo, buscando formas de se reconstruir, renovando-se e sendo melhor. Devia vê-la o caçador, que pouca ideia faz dos danos que causou. Devia vê-la bem, no seu habitat, para ver que há mais na fera que as suas limitações, do que o alvo que atingiu.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Crónica de um disparo II

Deviam vê-la, retratá-la, agora destruída e forçada a confrontar-se com o pouco nada que na realidade é e a miséria em que se tornou a armadura que para si criara. Armadura ridícula, ilusória, papel de alumínio à guisa de chapa de aço temperado, enganando mais a que a enverga do que aqueles contra os quais a deveria defender.
É agora fera ferida de lume apagado, deviam vê-la. O instinto leva-a a fugir para as sombras, querendo sarar e reconstruir-se a partir dos escombros que o caçador de olho vivo lhe deixou. O instinto atrai-a para ele como a chama atrai a borboleta, querendo retaliar, magoar, pagar de alguma forma a dúbia vergonha, a dor pungente de ser confrontada à força com as suas falhas e a sua pequenez - o pouco, o nada, que conseguira por tempos iludir-se que nao era.